Há uma série de críticas, no Brasil, sobre a obrigatoriedade do voto. Essas críticas são infundadas pelo seguinte: Aqui no Brasil o voto não é obrigatório.
Vejamos: o cidadão pode votar em branco, anular o voto, justificar sua ausência no caso de estar em outra cidade ou, em último caso, se não fizer qualquer das anteriores, tem até 90 dias para regularizar sua situação eleitoral, pagando uma multa irrisória de cerca de três reais.
Portanto, o voto não é obrigatório, mas é preciso que o cidadão reconheça minimamente a existência do processo eleitoral – afinal, milhares de brasileiros foram torturados e mortos na luta por esse direito. Em suma, os cidadãos querem ter o direito ao voto, mas uma parte considerável se sente ofendida por este direito trazer consigo algumas obrigações. Neste momento, a ofensa aparece como um ataque à liberdade individual, o que nos serve para pensar um traço universal das sociedades pós-modernas: a banalização do conceito de liberdade.
Ao contrário de uma discussão moderna, muito mais complexa, em que a busca pela liberdade implica a possibilidade de escolha sobre uma profissão, uma posição em relação à sexualidade, ao desejo, a possibilidade de construir uma sociedade melhor e de expressar a opinião sobre as questões políticas realmente relevantes – o conceito banalizado de liberdade resume-se à capacidade de se fazer o que quiser, consumir de tudo e falar qualquer coisa sobre qualquer pessoa.
Nesta medida, ter de dar alguma satisfação a uma instância superior – no caso, ao tribunal eleitoral – aparece como grave cerceamento desta liberdade banalizada.
E a psicanálise, onde entra nesta história? A psicanálise ganha relevância à medida em que muitas pessoas que querem votar incomodam-se ao se sentirem obrigadas a fazê-lo. Aqui surge a importância do conceito de superego tirânico, uma instância que, como o nome sugere, tiraniza o ego, impele o eu a procurar uma satisfação absoluta apenas para escancarar sua condição de castrado. Assim, em situações em que poderia ficar feliz, o sujeito neurótico se sente constrangido, pois se vê obrigado a aceitar uma satisfação que, no fundo, sabe que será incompleta, ainda que bastante prazerosa.
Um exemplo seria um noivo ou uma noiva que amam o pretendente, querem se casar, mas que, quando veem os preparativos para o evento, sentem-se angustiados, perseguidos, pois percebem que estão em um caminho de difícil retorno, a tal ponto que, na véspera da cerimônia, já não é mais possível retroceder – e o sujeito em questão não quer retroceder, quer se casar – mas a ideia da obrigatoriedade o persegue, ele começa a colocar em dúvida seus sentimentos, sua escolha, e sente-se tentado a encontrar um jeito de estragar o casamento.
Com a ideia da liberdade, em geral, e do voto, em particular, ocorre algo semelhante. O sujeito quer ter a oportunidade de escolha, mas não aceita qualquer interferência, influência e nem mesmo a ideia de sua irreversibilidade. Ou seja, para este sujeito, o ideal seria poder tomar uma decisão com autonomia absoluta e ter o direito de refazer essa escolha conforme sua vontade, tomando todos os caminhos possíveis. A partir de então, qualquer instância que impeça que o sujeito refaça sua escolha – ou seja, que o responsabilize em sua escolha – surgirá como mecanismo tirânico e cerceador de liberdade.
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