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Preconceito inconsciente e a desativação de explosivos

Atualizado: 12 de ago. de 2019



Quando eu era criança, por volta dos cinco anos, em uma situação cotidiana, alguém que, espero, seja parente de algum parente distante, algum primo de oitavo ou nono grau, proferiu a seguinte frase: “Aquele funcionário novo é bem limpinho, mesmo quando não tem sabonete, ele diz: ‘Doutor, me dá um sabão de coco pra eu tomar banho’”. A banalidade da situação, a familiaridade com que essa frase foi proferida e recebida pelas pessoas fez com que essas palavras – terríveis – entrassem em minha mente como normais. Ou quase, porque ao longo dos anos essa frase se manteve apartada das outras associações, não se misturava com as outras, mas ficava protegida e, eventualmente, insistia em mim como a memória de uma pessoa limpinha que tomava banho com sabão de coco.

Recentemente, eu estava dando banho no meu filho enquanto ele lavava seus brinquedos com sabão de coco. Eu ensaboava suas costas e ele não estava achando o seu sabão, então me perguntou: “Papai, você tá me lavando com o sabão de lavar coisa?”. Ao que respondi: “Não, filho, estou te lavando com o sabão de lavar gen....te”. Foi só nesse momento que a frase de infância se confrontou com o restante do meu mundo simbólico e sua dimensão terrivelmente preconceituosa pôde transparecer para mim em termos da coisificação do sujeito operada por quem está em condição de supremacia social e econômica, revelada no momento em que, supostamente, pretende elogiar.

Essa ressignificação foi surpreendente: como eu, depois de tantos anos de psicanálise, poderia ter mantido aquela frase intocada? Erroneamente se pensa que nós falamos as palavras, frases e ideias. Ao contrário, as palavras que nos habitam é que nos falam. Deste modo, eu era falado e existia naquela frase que me habitava.

Somos habitados por frases que dizem mais do que supomos em uma escuta ingênua. Ao longo da vida, as discussões, as reflexões, o aprendizado e o processo analítico podem metabolizar, transformar essas frases em outras mais complexas, mais interessantes, mais ricas. Contudo, nunca podemos ter certeza de termos limpado todo o terreno dessas frases terríveis que continuam a nos falar. Fiz então uma imagem de um campo minado: discussões, reflexões e a psicanálise podem desarmar essas minas, mas nunca se sabe se sobrou alguma e quando ela explodirá sobre nossos pés.

Recentemente uma bomba dessas explodiu e levou pelos ares o jornalista William Waack, da TV Globo. Quando tornou-se público o vídeo em que ele proferia a criminosa expressão “coisa de preto”, sua imagem tornou-se incompatível com a moralidade que a empresa na qual trabalhava alega defender. Assim, a emissora viu-se obrigada a tentar se separar de seu funcionário, como se ela mesma não seguisse uma agenda conservadora.

Muito além de uma questão específica, este episódio criou a oportunidade para que o público em geral pudesse estranhar aquela fala. Não basta que as expressões “coisa de preto” ou “pessoa limpinha” sejam caladas, elas devem ser desnaturalizadas, isto é, devem sofrer um desmonte interno que as desestabilize enquanto verdade subjetiva.

Parte desse processo consiste, por exemplo, em discutir como os derivados das palavras “preto”, “pobre”, “sujeira”, ”perigoso”, “doença”, “burrice”, “preguiça” etc. foram associados historicamente para garantir determinadas relações de poder, e como repeti-las é reforçar esse desequilíbrio. Este processo transcorre coletivamente, uma vez que os diversos atores podem discutir e refletir sobre a sociedade a fim de criticar seus modos de opressão e violência. Aqui estamos no campo da racionalidade e da moralidade e, por conseguinte, no registro da consciência.

Infelizmente, essa tarefa é mais difícil do que seria de se esperar. Minha proposta com esse texto é sugerir mecanismos inconscientes que atrapalham a apropriação da história por parte dos cidadãos, a saber, a articulação entre a história de uma sociedade e a história pessoal dos sujeitos. Há, por conseguinte, uma parte individualizada do processo de superação dos preconceitos, na qual cada um precisa se haver com o fato de estar pessoalmente sustentado por associações estereotipadas.

Eliminar uma sentença verbal que esteja entranhada na vida afetiva de um sujeito é, portanto, uma tarefa complicada. Ao contrário de uma cirurgia, em que apenas um tecido específico sofre a intervenção, o complexo de relações que sustentam os ditos também demandam reformulação. Revisitar ditos infantis implica revisar idealizações de pessoas tidas como portadoras de saber e exemplo de moralidade, cujos ditos também foram fundamentais para a constituição de um saber sobre si mesmo. Em suma, dificilmente conseguimos desvencilhar esses “ditos podres” daqueles ditos criadores de uma primeira identidade, por meio dos quais éramos falados na infância. Esses ditos estão entrelaçados à forma como o mundo nos era apresentado na infância e sustentam a memória de pessoas importantes em nossa história, com suas vestes de sabedoria e proteção.

Revisitar esses ditos implica, portanto, perturbar imagens idealizadas de uma infância pacífica, amorosa, quando as cores do mundo eram mais nítidas, quando bem e mal eram facilmente discerníveis desde que segurássemos as mãos das pessoas sábias que nos guiavam. Essa romantização explica a nostalgia com a qual as pessoas frequentemente se lembram do passado: “antigamente era muito melhor”, “o mundo era mais alegre”, “era possível confiar nas pessoas”, etc. Ironicamente, essa nostalgia também acometia as pessoas do passado.

Enfim, olhar criticamente para o passado implica uma perda narcísica – é um pedaço do sujeito que se vai cada vez que um dito cai. Colocado dessa forma, o percurso de cada um para se desvencilhar de seus preconceitos se aparenta com um percurso analítico individual. O que é uma análise se não um processo para superar visões preconceituosas e estereotipadas de si mesmo? Em análise, somos impelidos a estranhar desejos infantis, formas de satisfação, idealizações de bem e mal.

O combate ao preconceito, portanto, está muito além do âmbito da racionalidade, da moralidade. Em parte ele pode ser feito no âmbito coletivo, mas em parte se insere na luta íntima de cada um.

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