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Que horas ela volta? A maternidade de escanteio.

Atualizado: 11 de mai. de 2018



O filme Que horas ela volta? causa forte reação do público e tem trazido muitas discussões. Apesar de apresentar temáticas diversas, os debates e comentários geralmente focalizam a exploração social, a segregação, a luta de classes eventualmente escamoteada por pequenas demonstrações de afeto e familiaridade. De fato, trata-se de um vetor importante para pensarmos a sociedade brasileira e sua tirania cotidiana. Contudo, a predominância deste tipo de discussão também é sintomática do modo como pensamos nossa cultura e, mais extensamente, nossa humanidade.

Vale ressaltar que Anna Muylaert, roteirista e diretora, remete a origem da ideia do filme à sua experiência como mãe, quando percebeu a importância de se ocupar do filho, ao passo que muitas mães terceirizam essa função para as babás[3] . O filme está calcado, portanto, na ausência materna e na possibilidade de sua presença. Esse viés é confirmado pelo título do filme, a pergunta de um filho por sua mãe, endereçada a um terceiro: “que horas ela volta?”.

A indagação, vale enfatizar, é feita pelo filho rico. Esse ponto passa desapercebido – ao menos nas análises a que tive acesso – e traz um incômodo para os questionamentos sociais: deter as condições materiais necessárias não é suficiente para garantir uma boa relação mãe-filho. Bárbara, a patroa, olhava para a relação de seu filho com a sua empregada e se perguntava: “por que não consigo ter essa intimidade com ele?”.

Isso ajuda a desnaturalizar a ideia de que a dificuldade na relação entre Val (a trabalhadora doméstica) e sua filha resume-se à distância geográfica entre elas. Há uma série de não ditos, de silêncios e impossibilidades que não são superados com a proximidade física e impedem que Jessica tome Val como sua mãe. Aqui a maternidade não é tratada como algo instintivo, natural e pleno de satisfações, mas como algo que abrange a angústia, o desamparo e as diversas ambivalências maternas.

A transformação de Val tem início quando ela escancara sua alegria pelo sucesso da filha no Vestibular, a despeito do constrangimento dos patrões. Em seguida, ocorre a belíssima cena em que Val entra na piscina, onde se permite gozar a vida de forma transgressiva, tal como Jessica. Ou seja, ao se deixar transformar pela filha, permitir que entrasse em sua vida – não como hóspede, mas enquanto alteridade – ela se colocou como mãe. A transformação continua pelo deslocamento da casa dos patrões para a casa das duas, e culmina na oferta para ajudar a cuidar do neto, como forma de sua filha poder ser uma mãe que ela mesma não pôde ser.

De volta ao início da argumentação, quando as discussões sobre o filme se detêm majoritariamente nas fundamentações de ordem econômica, é como se a dimensão da maternidade sofresse um segundo golpe, tornando-se mero coadjuvante das relações de poder. Em outras palavras, a multiplicidade de afetos que atravessam a relação mãe-filha fica submetida às esferas econômica e geográfica, impedindo-nos de indagar o porquê de algumas mães não conseguirem cuidar de seus filhos.

Temos, assim, uma repetição sintomática de nossa macropolítica. A proclamação da importância das crianças e jovens como o “futuro do país” tornou-se senso comum, mas as políticas da infância e adolescência continuam à sombra de interesses econômicos, do ódio de classe, do preconceito racial, enfim, de elementos que promovem a exclusão e culpabilização dos jovens – como vemos através do atual movimento pela redução da maioridade penal. Contudo, o ponto nevrálgico não é o preconceito, a meritocracia ou o neoliberalismo, mas algo sumamente elementar e que beira a ingenuidade: “por que não conseguimos – enquanto país – cuidar de nossas crianças?”.

Para arriscar o início de uma resposta, diria que a juventude, tal como figurabilizada por Jessica, incomoda por questionar nossos pressupostos e narrativas arraigadas, sejam eles mais conservadores ou progressistas, porque são novas questões, novos problemas e novas formas de resolução; e porque os embates com a juventude apontam para as falhas e cronificações de nossas instituições, nossa incapacidade de incorporar o novo de forma não violenta. Uma boa educação não deveria ter como finalidade produzir jovens capazes de aperfeiçoar o mundo que lhes foi legado, mas sim objetivar uma geração de arquitetos de um mundo novo transformado segundo seu próprio discernimento. Contudo, isso seria uma concessão de poder muito além do que somos capazes de tolerar.

Na defensiva, as gerações mais antigas lançam mão de velhos clichês: “os jovens de hoje não têm valores, são alienados, preguiçosos, mimados, consumistas, vivem num mundo virtual, não conhecem o mundo real” etc. Essas são formas tradicionais de dominação, de tirá-los do quarto de hóspedes e colocá-los no abafado quarto dos fundos. Assim, enquanto cidadãos, o filme nos coloca uma incômoda pergunta: “que horas voltaremos?”.

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[1]Texto originariamente publicado no Boletim Online do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. n.36





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